quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Epifanias Quilombolas

Era uma tarde chuvosa de dezembro, lá estava eu sentado no chão da sala do “Quilombo” tentando relacionar correntes estéticas e pensamento político nos anos 30, quando em meio ao chiado da chuva podia ouvir os berros!

_ Socorro! Socorro! Mamãe socorro!

Imediatamente Gustavo passa pela sala. Carregava consigo um misto de curiosidade e aflição que expressava pelos seus olhos assustados. Acompanhei-o até o quintal dos fundos. De nosso quintal pude ver uma menina aos berros na janela de sua casa com uma criança de colo. Neste mesmo momento algo me chamou atenção.

Uma mulher negra, desfigurada pelas marcas do tempo, com cabelos brancos e esganiçados em um vestido simples, todo molhado que escondia sua silhueta desenhada pelas verminoses. Em silencio esta mulher se situava ao lado da porta em baixo das telhas em quanto se encolhia como forma de fugir das gotas da chuva. O Asco e a repugnância que aquela entidade me causava não permitiam que eu a aceitasse como real. Ainda sim podia ouvir os gritos daquela menina com uma criança em seu colo.

_ Socorro! Socorro! Mamãe socorro! Socorro! Socorro!

Perguntei a Gustavo se ele também havia visto aquela mulher ou se de fato eu estava vendo algo não humano. Sim, a minha incredulidade não anulava a existência daquela pobre coitada. Sentimos medo, mas o pouco bom senso que nos restava naquela situação de pânico nos fez perceber que além dos choros daquela pobre menina e da pobre mulher que ali estava, nada mais de estranho acontecia. Não poderia ser um seqüestro, pois uma pessoa amordaçada não conseguiria gritar; Não poderia ser violência sexual ou domestica, pois não ouvíamos barulhos de coisas quebrando e os gritos que ouvíamos não eram de dor, mas de desespero! A duvida permaneceu em nossas cabeças e a única certeza que tínhamos era a de que tínhamos de fazer alguma coisa.

Gustavo cogitou a possibilidade de chamarmos a polícia, mas logo lembramos que a muito tempo a polícia não aparecia naquela região periférica da cidade, e não era por falta de serviço! Naquele mesmo momento comentei com Gustavo:

_ As vezes tenho ‘insights” onde olho para o presente e vejo o passado.

Apesar de não saber exatamente o que acontecia a explicação daquela situação se desenhava meticulosamente em minha cabeça.

_ Uma mulher negra, assustadora em um lugar tão tragicamente marcado pelo colonialismo e pela escravidão como Campos dos Goytacazes. Como aquilo era assustador, trágico, satânico. Uma menina branca em casa com seu filho de colo abre sua janela e mesmo sem saber do que se trata enxerga diante de si 500 anos de degradações personificados naquela mulher. Como aquilo era assustador!

Esperamos, esperamos. A mãe daquela, não tão inocente menina com seu filho de colo, apareceu. Estranhamente ela também não conhecia a misteriosa visitante que adentrara em seu quintal.

Logo demos ela por doida ou bêbada. Em quanto a proprietária da casa pedia para que a mulher saísse de seu quintal, pensávamos em alguma estratégia mais “inteligente” para ajudar. Pedi a Gustavo que pegasse uma garrafa. Em toda minha estupidez imaginei que poderia seduzi-la com uma garrafa de bebida. Não satisfeito com minha “estupenda” idéia achei que poderia atraí-la para fora da casa com aquela garrafa, convidando-a a vir buscá-la do lado de fora da casa.

Pobre dos homens que “não sabem o que fazem” ou pensam. Ela não queria a garrafa, ela não queria falar, ela não queria nada, exceto se abrigar das gotas geladas de chuva que molhavam sua tão calejada pele negra.

Repentinamente alguém que conhecia aquela mulher apareceu. Só neste momento me dei conta de minha ignorância em julgá-la. Seja lá o que ela fosse. Estava concluído, apenas queria se proteger da chuva fria.

Ainda hoje me pergunto se o álcool não desinfetaria mais as impurezas e tragédias deste mundo presentes no corpo e espírito daquela mulher do que sua loucura.